Benedita da Silva: mulher, negra, feminista e evangélica

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Fotos: Igor Sperotto
Fotos: Igor Sperotto

Benedita da Silva, aos 82 anos, esbanja vitalidade. Apoiando candidatos às eleições municipais deste ano, ela voa, roda e anda pelo Brasil de ponta a ponta, e novos convites inundam sua já recheada agenda.

Benê, como também é carinhosamente conhecida, ministra do desenvolvimento social no primeiro governo do presidente Lula, já disse uma vez que nasceu sob um triplo preconceito: mulher, negra e favelada.

Na infância, vendia limão e amendoim na rua para ajudar a família em casa e descia e subia muita ladeira no morro para entregar trouxas de roupas lavadas. Na vida adulta, chegou a ser homenageada pelo Museu da ONU em Nova Iorque como uma das 20 personalidades em todo o mundo que lutaram e ainda lutam contra o racismo.

Deputada federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT) do Rio de Janeiro, Benedita iniciou sua trajetória política em plena ditadura nos movimentos de favela contra remoções que ocorriam na capital fluminense.

Na comunidade Chapéu Mangueira, ainda adolescente, alfabetizava jovens e adultos pelo método Paulo Freire. Mais tarde, driblando todas as dificuldades, concluiu o curso superior em serviço social.

Ao longo de mais de 40 anos de vida pública, ela foi a primeira senadora, vice-governadora e governadora negra do Brasil. Antes, foi a primeira vereadora negra do Rio de Janeiro e depois, como deputada federal, foi uma das 25 mulheres que compuseram na Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988).O preconceito contra mulheres na política era tão grande que eram pejorativamente chamadas por outros parlamentares e imprensa na época de Bancada do Batom. Também, a única negra.

Evangélica, a deputada diz ser um exemplo da possibilidade de convivência da sua fé com lutas progressistas. Entre elas, a conquista de direitos trabalhistas para empregados e empregadas domésticas, projeto aprovado sob sua relatoria.

Outro dito de Benedita traduz sua história. Ela não entrou para a política, foi empurrada para a política pela própria vida.

Extra Classe – Sua trajetória política começou nas comunidades do Rio de Janeiro. O que motivou você a se envolver nos movimentos de favela, e quais foram os maiores desafios que enfrentou no início?

Benedita da Silva –  Na época da ditadura militar, o movimento comunitário ressurgiu para lutar contra a remoção das favelas e foi essa a motivação de meu envolvimento. Essa luta era de interesses de todos os moradores – homens e mulheres e então vi a necessidade de organizar as mulheres no departamento feminino da associação de moradores. Externamente, o maior desafio era o enfrentamento da repressão, mas naquele movimento o machismo estava muito presente, apesar do grande peso das mulheres na vida comunitária, pois boa parte delas era chefe de família – como também ocorre atualmente.

EC – Você foi a primeira senadora negra do Brasil, foi a única deputada constituinte negra, primeira governadora negra do Rio de Janeiro e sempre se destacou pela defesa dos direitos das minorias. O que essa conquista significou para você e para o Movimento Negro no país?

Benedita – Na realidade o pioneirismo de minha representação negra nesses espaços elitistas do poder branco tem seu maior significado para a população negra que é majoritária no país. É esse significado político e principalmente simbólico para o povo negro o que melhor expressa a permanente luta pela democracia popular e contra o racismo, o machismo e a exclusão social, aspectos diferentes do mesmo atraso e reacionarismo históricos da sociedade e do estado brasileiro. O movimento negro, como maior expressão da consciência negra e da luta contra o racismo, é efeito e causa desses avanços do povo negro.

Benedita da Silva foi a vida que me empurrou para a politica 3
Foto: Igor Sperotto

EC – Como foi chegar em uma Assembleia Nacional Constituinte  com apenas 25 mulheres e sendo a única negra?
Benedita – Não foi fácil chegar até lá. Porque, dependendo da bandeira que você esteja defendendo, você tem realmente dificuldades para passar. Hoje as chamadas bandeiras contra o racismo, violência contra a mulher, terra dos remanescentes dos quilombos, tudo eram coisas que você não via no dia-a-dia da política, né?

EC – O que eram essas coisas do dia-a-dia?
Benedita – Eles dizia, vamos discutir economia, vamos discutir outros assuntos, mas não falar dessas coisas que eles chamam hoje de identitárias. Então, não foi fácil chegar até lá, mas chegamos e chegamos com essas bandeiras. Na Assembleia Nacional Constituinte, só poderia começar em defesa das mulheres, em defesa da juventude, das crianças, em defesa das trabalhadoras domésticas, dos quilombolas. Foi um momento muito importante, mas também difícil. E tive bons encontros.

EC – Surpresas?
Benedita – Eu lembro-me que a minha mãe foi lavadeira de Juscelino Kubitschek e eu entreguei muita roupa que minha mãe lavava e passava na casa do Juscelino; jamais pensei que fosse ser constituinte com a sua filha (Márcia Kubitschek). Foi assim, para mim, gratificante, mas, confesso, que eu parecia no início um peixe fora d’água. Mas, sabe, a força da mulher? Eu empinei o nariz, como nós falamos, e fui defender nossas bandeiras.

EC – Volta e meia aparece gente dizendo que tem que mudar a Constituição. O que a senhora diz sobre isto?
Benedita – Olha, eu quero dizer é que ainda falta cumprir muita coisa da nossa Constituição. Ela foi um consenso das forças nacionais. O Brasil se encontrou com o Brasil, e fizemos a Constituição possível, cidadã. Tem partes que eu não concordo, mas era o que dava para avançar. Um exemplo é o caso das trabalhadoras domésticas, que gerou um debate profundo. Levou tempo, mas conseguimos aprovar a PEC (478/2010) 25 anos depois. Agora, tem gente querendo mudar a Constituição, mas a questão é: mudar para pior ou para melhorar? Precisamos garantir mais direitos e não o contrário. Nos 36 anos da Constituição, temos que valorizar o esforço de todas as forças nacionais que a construíram.

EC – Você é casada com um ator, um grande expoente do cinema nacional. Como é a sua relação com a cultura e como se dá a relação de vocês em meio a esse conturbado meio político onde você, de uma hora para outra, está em um ou outro lugar, sempre militando e chamada para apoiar candidaturas ao longo do país?

Benedita –  Sempre valorizei as expressões culturais de nosso povo, sobretudo do povo negro. Desde o meu primeiro mandato de vereadora, em 1982 e, em seguida, de deputada constituinte a defesa da cultura nacional e popular sempre esteve na minha pauta. Claro que o meu casamento com o Pitanga (Antonio), expressão do famoso Cinema Novo deu mais vida a esse meu compromisso com a cultura nacional. Eu e o Pitanga temos igualmente agendas cheias e isso é o nosso normal, que não causa nenhum problema em nossa relação.

Atualmente, a sociedade e a representação política se tornaram mais conservadoras por conta do avanço da extrema-direita, mas no passado as pautas da igualdade racial e de gênero e dos direitos sociais e trabalhistas também sofriam muita resistência

EC – Ao longo de sua carreira, você sempre defendeu pautas como igualdade racial, de gênero e os direitos das empregadas domésticas. Quais foram os maiores desafios enfrentados, e que avanços ainda são necessários?
Benedita – Atualmente, a sociedade e a representação política se tornaram mais conservadoras por conta do avanço da extrema-direita, mas no passado as pautas da igualdade racial e de gênero e dos direitos sociais e trabalhistas também sofriam muita resistência, especialmente nos governos neoliberais dos tucanos. Somente nos períodos dos governo de Lula e de Dilma é que muitas conquistas foram atingidas, com destaque para a chamada PEC das Domésticas, que finalmente se fez justiça histórica à luta das empregadas e empregados domésticos. Agora, no terceiro mandato de Lula presidente, voltamos a avançar novamente nas pautas sociais e igualitárias do povo negro e das mulheres.

EC – Em 2023, o Senado aprovou a Política Nacional de Conscientização e Incentivo à Doação e Transplante de Órgãos e Tecidos que entrou em vigor em fevereiro passado. Em 1993, 30 anos antes, a senhora já propunha o PL 3623/1993 que tratava da regulamentação sobre a doação de órgãos. Aí a senhora mostra um lado pouco conhecido, que ultrapassa sua atuação parlamentar mais conhecida. O que a motivou a entrar nessa temática?
Benedita –Tudo  o que diz respeito aos direitos, à educação e saúde das pessoas tenho interesse em defender. No caso da doação de órgãos acho egoísmo querermos preservar algo que os vermes vão destruir, quando poderíamos estar ajudando a vida de quem precisa. 

Fiquei feliz quando no primeiro governo Lula foi aprovada uma lei que regulamenta a doação de órgãos e agora, em seu terceiro mandato, o presidente Lula institui a  Política Nacional de Conscientização e Incentivo à Doação e ao Transplante de Órgãos e Tecidos.

Dia Nacional da Consciência Negra foi importante para se tornar referência histórica e identitária da luta do povo negro contra o racismo estrutural e contra a sua invisibilidade na sociedade tornada evidente nos espaços culturais da TV, Cinema e peças publicitárias

EC – Entre seus projetos mais emblemáticos, está a aprovação do Dia Nacional da Consciência Negra. Como você avalia o impacto dessa data não só na comunidade negra e a importância da representatividade negra nos espaços culturais, como a TV e o cinema?
Benedita – O Dia Nacional da Consciência Negra foi importante para se tornar referência histórica e identitária da luta do povo negro contra o racismo estrutural e contra a sua invisibilidade na sociedade tornada evidente nos espaços culturais da TV, Cinema e peças publicitárias. Em tais espaços parece que o Brasil é um país europeu e não um país majoritariamente de população negra. Claro que essa luta é muito mais profunda e abrangente mas a criação e valorização dessa data nacional, em homenagem a Zumbi dos Palmares, nosso grande líder da luta pela liberdade e contra o cruel regime da escravidão, desempenha importante papel unificador do povo negro.

EC – Sendo uma mulher negra, feminista e evangélica, como você vê a coexistência dessas identidades que, para muitos, não é fácil no Brasil, e de que maneira elas influenciam sua atuação política?

Benedita – Eu sou um exemplo de que é possível conviverem, sem contradição, a minha religião com a minha atuação nas lutas contra o racismo e contra a discriminação da mulher. Não são identidades diferentes, pois a minha identidade é uma só: nasci mulher e negra numa sociedade racista e machista e por necessidade espiritual me tornei evangélica. A minha leitura da Bíblia me dá força e ensinamento para seguir em minha luta não apenas como mulher e negra, mas como cidadã e petista.

EC – Já são mais de 40 anos de vida pública, com uma trajetória marcada por conquistas significativas. Acho que já dá para falar de legado, não? Como você avalia o legado que está deixando para as futuras gerações de mulheres e políticos, negros ou não?
Benedita – Os espaços políticos que conquistei em minha vida só foram possíveis porque contei com o apoio do povo que luta. Nenhuma conquista nessas lutas é possível apenas como mérito pessoal. Portanto, se pode falar de legado é só no sentido de que ele representa a elevação da consciência política das mulheres e do povo negro, coisa que podemos ver nas vitórias eleitorais e políticas de Lula, do PT e das forças democráticas e movimentos negro e de mulheres. Felizmente não sou mais pioneira, pois hoje temos muitas mulheres e mulheres negras e indígenas fazendo ensino superior e ocupando espaços de representação política.

EC – Como você analisa a atual conjuntura política nacional, com o avanço do conservadorismo e de projetos individualistas? Que conselho, do alto da sua experiência, você daria para jovens mulheres que desejam entrar na política em defesa de projetos coletivos e das minorias?

Benedita – Sim, podemos constatar que o conservadorismo e a ideologia individualistas da falsa meritocracia ganharam forças, mas não podemos subestimar que os valores da democracia, da igualdade e solidariedade também voltaram a se fortalecer, derrotando inclusive a barbárie fascista nas eleições de 2022. Prefiro ver a conjuntura nacional pelos avanços do governo Lula nos planos econômicos, sociais e internacionais. Esse é o novo Brasil dos direitos, da democracia, da reindustrialização, da transição energética, do desenvolvimento inclusivo e da inclusão soberana no mundo, que o presidente Lula está construindo por dentro do velho Brasil reacionário que tem maioria no Congresso e teima em voltar por meio da desinformação, da mentira e de golpes.

EC – A senhora está com 82 anos de idade e não para. Nessa campanha, teve que descer em Florianópolis para vir a Porto Alegre de carro por causa do aeroporto fora de operações devido a enchente; No início da semana passada, esteve em Pernambuco, na quinta-feira, no Amazonas. Qual o segredo de tanta vitalidade?

Benedita – Já me acostumei com toda essa intensa movimentação, pois faço isso desde o meu primeiro mandato de vereadora, em 1982. Além de não descuidar nunca da minha saúde, sinto grande satisfação de cumprir e realizar os compromissos políticos de meu mandato. Servir ao povo me traz grande felicidade!

EC – A política não é fácil e a senhora vem de um estado onde, me parece, a situação é ainda mais conturbada. Não desanima? Como manter a esperança?
Benedita – Somente a partir da vitória de Lula, em 2022, e dos grandes êxitos de seus pouco mais de um ano e nove meses de seu terceiro mandato é que o povo brasileiro conseguiu respirar e sentir que sua vida aos poucos está ficando melhor. Mas para uma militante das causas populares, como eu sempre fui e continuarei sendo, mais do que esperança é a perspectiva de conseguirmos tirar o Brasil de séculos de atraso, de racismo e de submissão internacional que me faz ir em frente e nunca desanimar, apesar de algumas derrotas sofridas, como o golpe contra a presidenta Dilma, da prisão arbitrária de Lula e dos quatro anos de um governo antipovo.

Por Extraclasse

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